Um dia a seguir ao fim do mundo, acordei.
Oh, e que dia cinzento estava! Não havia uma sombra que se movesse no meio da sala vazia. Hoje, nem os cortinados (que de tantos folhos vermelhos que possuíam nunca paravam de ondular com o vento que trespassava a janela) se mexiam. A mesa à frente da televisão ainda tinha o bilhete que me havias deixado, na manhã anterior: “Filha, hoje vou chegar tarde para o almoço, mas prometo que à tarde vamos andar de bicicleta para o jardim. Beijinhos, adoro-te”.
Oh, mãe! Para onde foste tu, agora? E com quem me vais deixar?
Ontem, ontem, ontem.
O telefone tocou. Andei pelo corredor, virei à esquerda e cheguei à mesinha ao pé da porta da entrada. Olhei pelo visor, e vi que o número estava privado. Tinhas-me ensinado a nunca atender números privados, mas algo me dizia que devia atender. Atendi, então.
“Boa tarde, fala a menina Beatriz?” – era para mim. Uma voz de homem tentava controlar a tensão por detrás da linha telefónica. Ouvia sirenes e muitas pessoas a falar, lá ao fundo. O meu coração começou a bater mais depressa, e foi então que murmurei as palavras “Sim, sou eu”. À medida que o homem ia falando, as lágrimas vertiam-me pelo rosto abaixo, caindo no chão, no telefone, no peito. Dizia ele que tinhas sido atropelada à entrada do café da Dona Antónia. Um homem vinha bêbedo, a conduzir a cem à hora nas estreitas ruas da cidade, entrara pelo passeio adentro enquanto tu passavas, e aí aconteceu o pior. Procurava perguntas para fazer ao senhor de voz trémula, mas parecia não ter cordas vocais. Perguntei, então, para onde me deveria dirigir para ver a minha mãe – tu –, e assim que ele me disse, desliguei o telefone. Agarrei nas chaves de casa e nas do carro e fui a correr pelas escadas abaixo. Esquecera-me de despir as calças do pijama, mas nem quis voltar atrás.
Prego a fundo, acelerei o mais que pude – dentro dos limites; não queria provocar a ninguém a dor que o outro anormal me tinha provocado a mim.
Quando cheguei ao hospital, não via ninguém à minha frente. As ambulâncias, pessoas feridas a passar pelos corredores, as paredes brancas e o cheiro a éter, tudo me passava ao lado. Corri a perguntar a alguém onde poderia encontrar-te. “Corredor 3, sala 7”, disse uma senhora à qual nem olhei para a cara. As lágrimas ainda me desfocavam a vista.
Entrei na sala. Era branca, como todas as pavorosas salas de hospital, mas diferente porque estavas lá tu. Ligada a todos aqueles fios e máquinas que apitavam. Parecias-me fraca - estavas fraca. Mas continuavas bela como sempre te costumava ver. Os teus cabelos loiros descaiam sobre a trança que havias feito de manhã, e ainda tinhas os olhos e os lábios pintados. Olhei-te mais a fundo. Tinhas ferimentos por todo o corpo: nos braços, nas pernas, na nuca, e a máquina apitou num som contínuo. Piiiiiiiii! E chorei. Chorei até as minhas lágrimas te lavarem as feridas, abracei-te, repelindo a despedida que se tinha imposto sobre nós, e chorei mais ainda. As mil e uma imagens de uma vida passaram-me à frente dos olhos, como quem vê um álbum de memórias guardado e esquecido na gaveta da mesa-de-cabeceira.
Num ápice, três médicos atravessaram a porta transparente da ala em que nos encontrávamos as duas – ou onde eu me encontrava. Tu já lá não estavas. Levaram-te e eu gritei. Chamei-te, e tu tinhas de me responder. Nunca antes me havias recusado uma palavra, e agora nem um suspiro teu podia ouvir. E à medida que os médicos te afastavam de mim, o aperto era maior, e as imagens cada vez mais numerosas. Ias para dentro de uma outra sala. “Vamos tentar reanimá-la, mas não lhe podemos dar muitas esperanças. O embate foi muito forte e a sua mãe tem fortes lesões por todo o corpo. Vamos dar o nosso melhor”, disse um médico da equipa que te acompanhava. Mas eu já perdera a esperança. Já começava a ver os dias sozinhos que se seguiam à tua partida. Não ia haver mais almoços com guerras de batatas fritas nem noites de maquilhagem e fotografia. Tudo por causa de um alcoólico, bêbedo, ahh! As receitas de culinária falhadas, as limpezas com música de furar os tímpanos, os banhos na piscina do vizinho do rés-do-chão… Quem iria substituir o teu lugar, diz-me?
Rápido veio um médico desejar-me os pêsames. Não houve nada a fazer. Tinha-te perdido, perdi-te.
A minha cabeça parou de funcionar, não sentia os músculos das pernas, dos braços, do corpo inteiro. Só queria sair dali, ir para casa, dormir e ver que tudo não tinha passado de um pesadelo, e que tu irias estar ali para me abraçar e dizer “Pronto, Bea, já passou. A mãe está aqui”. Mas isso não ia acontecer, eu sabia.
Saí da sala. Percorri o corredor com os olhos lavados em lágrimas. Senti todos os olhos postos em mim – médicos, enfermeiros, pacientes, a senhora das limpezas – e desatei a correr. Queria ir para casa, aquele sítio arrepiava-me. Saí do hospital e já nem sentia as pernas, corria por impulso. Ao aproximar-me do carro, uma senhora chamou-me, disse que não estava em condições para conduzir e ofereceu-se para me levar a casa. Eu agradeci, mas recusei. Só queria estar sozinha.
Liguei o carro, meti o pé na embraiagem e avancei em direcção à casa que era nossa. Olhei para o lado e vi-te deitada no banco a esticar as pernas para o tablier, de óculos de sol, a cantar “I wanna be forever young”. Fechei os olhos num ápice e voltei a olhar para a estrada. Estava quase a chegar a casa. Virei a esquina do café da dona Antónia e estacionei o carro. Subi as escadas, que ficavam molhadas à minha passagem, à pressa, abri a porta, e deitei-me no sofá.
Todo o corpo me doía, toda a casa me feria, toda a tua ausência magoava. E assim ia ser para sempre.
Sempre defendera os meninos órfãos, quando os outros gozavam com eles no infantário, e agora era a vez de alguém me defender a mim. Sem pai que se soubesse, sem mãe que me acompanhasse, o que iria eu fazer?
Deitei-me no sofá, liguei a televisão para ver se me distraía, e sem dar conta adormeci. Já era tarde, e dormi até hoje, até agora.
Agora já estou mais calma. Já consigo passar cinco minutos de cara seca e mente vazia. E um dia só vai restar o vazio. Um vazio sem lágrimas, sem memórias nem esperanças.
Porque ontem, ontem o meu mundo acabou.
Oh, e que dia cinzento estava! Não havia uma sombra que se movesse no meio da sala vazia. Hoje, nem os cortinados (que de tantos folhos vermelhos que possuíam nunca paravam de ondular com o vento que trespassava a janela) se mexiam. A mesa à frente da televisão ainda tinha o bilhete que me havias deixado, na manhã anterior: “Filha, hoje vou chegar tarde para o almoço, mas prometo que à tarde vamos andar de bicicleta para o jardim. Beijinhos, adoro-te”.
Oh, mãe! Para onde foste tu, agora? E com quem me vais deixar?
Ontem, ontem, ontem.
O telefone tocou. Andei pelo corredor, virei à esquerda e cheguei à mesinha ao pé da porta da entrada. Olhei pelo visor, e vi que o número estava privado. Tinhas-me ensinado a nunca atender números privados, mas algo me dizia que devia atender. Atendi, então.
“Boa tarde, fala a menina Beatriz?” – era para mim. Uma voz de homem tentava controlar a tensão por detrás da linha telefónica. Ouvia sirenes e muitas pessoas a falar, lá ao fundo. O meu coração começou a bater mais depressa, e foi então que murmurei as palavras “Sim, sou eu”. À medida que o homem ia falando, as lágrimas vertiam-me pelo rosto abaixo, caindo no chão, no telefone, no peito. Dizia ele que tinhas sido atropelada à entrada do café da Dona Antónia. Um homem vinha bêbedo, a conduzir a cem à hora nas estreitas ruas da cidade, entrara pelo passeio adentro enquanto tu passavas, e aí aconteceu o pior. Procurava perguntas para fazer ao senhor de voz trémula, mas parecia não ter cordas vocais. Perguntei, então, para onde me deveria dirigir para ver a minha mãe – tu –, e assim que ele me disse, desliguei o telefone. Agarrei nas chaves de casa e nas do carro e fui a correr pelas escadas abaixo. Esquecera-me de despir as calças do pijama, mas nem quis voltar atrás.
Prego a fundo, acelerei o mais que pude – dentro dos limites; não queria provocar a ninguém a dor que o outro anormal me tinha provocado a mim.
Quando cheguei ao hospital, não via ninguém à minha frente. As ambulâncias, pessoas feridas a passar pelos corredores, as paredes brancas e o cheiro a éter, tudo me passava ao lado. Corri a perguntar a alguém onde poderia encontrar-te. “Corredor 3, sala 7”, disse uma senhora à qual nem olhei para a cara. As lágrimas ainda me desfocavam a vista.
Entrei na sala. Era branca, como todas as pavorosas salas de hospital, mas diferente porque estavas lá tu. Ligada a todos aqueles fios e máquinas que apitavam. Parecias-me fraca - estavas fraca. Mas continuavas bela como sempre te costumava ver. Os teus cabelos loiros descaiam sobre a trança que havias feito de manhã, e ainda tinhas os olhos e os lábios pintados. Olhei-te mais a fundo. Tinhas ferimentos por todo o corpo: nos braços, nas pernas, na nuca, e a máquina apitou num som contínuo. Piiiiiiiii! E chorei. Chorei até as minhas lágrimas te lavarem as feridas, abracei-te, repelindo a despedida que se tinha imposto sobre nós, e chorei mais ainda. As mil e uma imagens de uma vida passaram-me à frente dos olhos, como quem vê um álbum de memórias guardado e esquecido na gaveta da mesa-de-cabeceira.
Num ápice, três médicos atravessaram a porta transparente da ala em que nos encontrávamos as duas – ou onde eu me encontrava. Tu já lá não estavas. Levaram-te e eu gritei. Chamei-te, e tu tinhas de me responder. Nunca antes me havias recusado uma palavra, e agora nem um suspiro teu podia ouvir. E à medida que os médicos te afastavam de mim, o aperto era maior, e as imagens cada vez mais numerosas. Ias para dentro de uma outra sala. “Vamos tentar reanimá-la, mas não lhe podemos dar muitas esperanças. O embate foi muito forte e a sua mãe tem fortes lesões por todo o corpo. Vamos dar o nosso melhor”, disse um médico da equipa que te acompanhava. Mas eu já perdera a esperança. Já começava a ver os dias sozinhos que se seguiam à tua partida. Não ia haver mais almoços com guerras de batatas fritas nem noites de maquilhagem e fotografia. Tudo por causa de um alcoólico, bêbedo, ahh! As receitas de culinária falhadas, as limpezas com música de furar os tímpanos, os banhos na piscina do vizinho do rés-do-chão… Quem iria substituir o teu lugar, diz-me?
Rápido veio um médico desejar-me os pêsames. Não houve nada a fazer. Tinha-te perdido, perdi-te.
A minha cabeça parou de funcionar, não sentia os músculos das pernas, dos braços, do corpo inteiro. Só queria sair dali, ir para casa, dormir e ver que tudo não tinha passado de um pesadelo, e que tu irias estar ali para me abraçar e dizer “Pronto, Bea, já passou. A mãe está aqui”. Mas isso não ia acontecer, eu sabia.
Saí da sala. Percorri o corredor com os olhos lavados em lágrimas. Senti todos os olhos postos em mim – médicos, enfermeiros, pacientes, a senhora das limpezas – e desatei a correr. Queria ir para casa, aquele sítio arrepiava-me. Saí do hospital e já nem sentia as pernas, corria por impulso. Ao aproximar-me do carro, uma senhora chamou-me, disse que não estava em condições para conduzir e ofereceu-se para me levar a casa. Eu agradeci, mas recusei. Só queria estar sozinha.
Liguei o carro, meti o pé na embraiagem e avancei em direcção à casa que era nossa. Olhei para o lado e vi-te deitada no banco a esticar as pernas para o tablier, de óculos de sol, a cantar “I wanna be forever young”. Fechei os olhos num ápice e voltei a olhar para a estrada. Estava quase a chegar a casa. Virei a esquina do café da dona Antónia e estacionei o carro. Subi as escadas, que ficavam molhadas à minha passagem, à pressa, abri a porta, e deitei-me no sofá.
Todo o corpo me doía, toda a casa me feria, toda a tua ausência magoava. E assim ia ser para sempre.
Sempre defendera os meninos órfãos, quando os outros gozavam com eles no infantário, e agora era a vez de alguém me defender a mim. Sem pai que se soubesse, sem mãe que me acompanhasse, o que iria eu fazer?
Deitei-me no sofá, liguei a televisão para ver se me distraía, e sem dar conta adormeci. Já era tarde, e dormi até hoje, até agora.
Agora já estou mais calma. Já consigo passar cinco minutos de cara seca e mente vazia. E um dia só vai restar o vazio. Um vazio sem lágrimas, sem memórias nem esperanças.
Porque ontem, ontem o meu mundo acabou.
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